quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A sociedade contemporânea pelo olhar de um esquimó

O degelo do Oceano Ártico vem aumentando de forma acelerada por causa do aquecimento global. De 2004 para cá, a região passou a perder cerca de 240 quilômetros cúbicos de gelo por ano. Angaangaq Lyberth, líder espiritual do povo esquimó de Kalaallit Nunaat, no extremo norte da Groenlândia, é testemunha dessas mudanças. Desde 1968, Uncle, como é conhecido, faz palestras ao redor do mundo para falar de questões ambientais e sobre as conseqüências do derretimento das calotas polares para o planeta.

Membro do Instituto Internacional dos Quatro Mundos para o Desenvolvimento Humano e Comunitário, do Conselho Mundial de Sabedoria, do Clube Internacional de Budapeste e da Corporação para Restauração da Terra, entre outras organizações e movimentos, tem sido convidado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para atuar em questões indígenas e de paz. Durante a palestra que deu em São Paulo, no dia 13 de novembro, Uncle não falou sobre grandes teorias do desenvolvimento sustentável e nem apresentou soluções complexas para os problemas do planeta. Em vez disso, defendeu a harmonia entre o homem e a natureza como a melhor saída para as questões ambientais. Com discurso dócil e inspirador, Uncle faz uma análise da sociedade contemporânea e afirma: "Quando vejo as pessoas caminhando pela Avenida Paulista, em São Paulo, o que penso é que elas perderam completamente a conexão com a natureza".

Nesta edição, o Notícias da Semana divide com os leitores a conversa com o esquimó Angaangaq Lyberth e sua visão sobre a nossa sociedade.

Instituto Ethos: Na sua opinião, qual é a implicância do degelo das regiões polares para a vida no planeta?
Angaangaq Lyberth: Quando nasci, algumas geleiras perto da Groelândia tinham uma espessura de 5 quilômetros. Hoje em dia, elas não medem mais que 3 quilômetros. Ali havia uma ilha de gelo maior do que a de Manhattan, em Nova York, que está derretendo muito rápido. O derretimento desse gelo significou até agora 100 trilhões de litros de água no oceano. Com isso o mar está enchendo. Alguns lugares serão muito afetados, como é o caso da Amazônia. Isso porque a floresta se encontra ao nível do mar. Nessa região não há montanhas. Se o mar aumentar, não sobrará nada. Tudo ficará submerso. E eu me preocupo com os povos da Amazônia, pois o meu povo se identifica muito com eles. Somos pessoas ligadas à natureza e utilizamos seus recursos para sobreviver.

IE: Como é um dia na vida de um esquimó?
AL: Na vila em que vivo existem três casas. Uma delas tem mais de 500 anos, a outra 150 e a mais nova foi feita há 70 anos. Agora estamos meio espalhados pelo mundo. Mas voltamos à nossa casa sempre em julho. Na vila na qual eu vivo, é possível acordar com o barulho do rio e com o canto dos pássaros que vivem ali. Depois saímos para caminhar, pescar e escalar montanhas. Costumamos seguir o leito de um rio até chegar no topo da montanha onde as águas ficam bem profundas e cheias de peixes. Esse rio e outros dois que existem na região nos garantem alimento para o ano todo. Também caçamos baleias, leões-marinhos e outros animais. Na vila de onde eu venho, é preciso caçar.

IE: Podemos dizer que essa seria uma forma de vida sustentável?
Al: Sim, nós levamos uma vida sustentável. Não temos shopping centers para fazer compras. Lá, você precisa caçar. Fazemos nossas próprias roupas, com a pele dos animais que caçamos, e elas são bem diferentes destas que estou usando hoje. Vivemos de uma maneira muito simples.

IE: E o que você pensa quando anda sozinho?
Al: Na minha terra não há árvores, nem pessoas, nem carros. Somente gelo. Quando saio para caminhar, sei que posso percorrer 2 quilômetros sem encontrar ninguém. Por isso, ando sozinho e em silêncio com meus próprios pensamentos. Gosto de estar em contato com a mãe natureza e de escutar seus barulhos. Quando durmo no chão, posso sentir a vibração da terra. Isso nos faz perceber que a terra é viva e precisa de cuidados.

IE: Como você vê nossa sociedade?
Al: Penso que o ser humano encontrou um sistema muito complicado para viver. Vocês levam uma vida muito difícil. Sempre que venho a São Paulo fico impressionado com a quantidade de gente vivendo no mesmo espaço. Acho estranho encontrar tanta gente na rua e não parar para cumprimentar ninguém. As pessoas passam por você sem perguntar como vai sua família. A gente nem sabe o nome delas. Não consigo entender como vocês fazem isso. É uma forma de vida muito diferente da minha. Veja o Brasil, por exemplo. É um país enorme e com grande potencial agrícola. Ainda assim, não é capaz de alimentar seu próprio povo. Precisa importar coisas de lugares distantes, como a Índia e a China. Na minha visão, isso não é eficiente. As pessoas pensam que são muito espertas porque aprenderam a ler, a escrever e a fazer contas. São orgulhosas de sua profissão, mas esquecem que não serão capazes de se adaptar às mudanças que o planeta irá sofrer. Eu estarei bem, pois sou um caçador e saberei me virar. Mas me preocupo com as outras pessoas, como as que vivem aqui em São Paulo. E o que está acontecendo com o planeta é culpa de todo mundo.

IE: O que seria preciso fazer para mudar essa situação?
Al: O homem precisa derreter o gelo que há em seu coração. O homem esqueceu a beleza do mundo. Ficou tão ocupado com a vida moderna que esqueceu sua própria beleza.

Nenhum comentário: